Desde criança gostava de escrever. Escrever era uma forma de me esconder dos abusos que vivia ainda pequena. Era infernal aguentar um homem meu parente, que chamo comumente de estuprador. Mas não era só ele. Eu era uma criança branca, loirinha, daquele tipo considerado por muita gente como “padrão”, mas vivia ouvindo que era gorda, era filha do demônio, que iria pro inferno, que não pertencia à família, que ia morrer. Lembro de gostar de pintar também, mas os lápis de cor e canetinhas eram escassos. Mas havia caderno. Havia os papeis de pão. E escrever era como entrar num outro mundo, mesmo quando os deveres de casa eram apenas copiar páginas e páginas de alguma coisa que eu nem consigo lembrar onde estava escrito. Eu só lembro de mim escrevendo.
Eu me apaixonei logo pela poesia. Era a escrita mais livre, que podia fazer o sentido que quisesse, dependendo de quem quisesse ler. Eu aprendi a não me prender muito às rimas ou a fazer versos certinhos, como os professores queriam. A escrita meio sem lugar, sem pauta, sem linha e sem nexo podia estar no mundo e construir o meu mundo. A escrita apenas fluía.
Eu gostava da gramática, de conhecer as regras de Português, e logo isso virou um hobby. Eu gostava de saber a lógica e a história daquelas regras. Porque pela história já se via que as coisas mudavam. E de repente vi que estudar as regras – que foram por tanto tempo chamadas de “cultas” – era também um modo de nutrir comigo a esperança de mudança. A língua é viva, igual às minhas poesias. Aprendi a gostar de outras línguas e a trabalhar mais para poder estudá-las. Gosto de ver a fruição em muitas línguas. Queria me dedicar mais a isso. Ainda quero.
Escrevi muita poesia até entrar na faculdade. Ali foi só ladeira abaixo. Me fodi muito, quase fui jubilada. Mas pior era ser humilhada constantemente. Minhas letras, minha poesia, minha classe, minhas roupas, meu trabalho, minha corpa, nada cabia naquele lugar. Fui uma “aluna pífia” até começar a ver clínica e também a ver o “academiquês”. Aí consegui começar a sobreviver. Fiz vestibular pra História, mas um professor de Saúde Coletiva soube e me demoveu da ideia. Me chamou pra estudar discurso, saúde e mídia com ele, ainda vivíamos o rescaldo daquela ditadura. Então, primeiro foi o academiquês. Talvez pela habilidade em estudar as regras das línguas, eu tenha conseguido me achar logo nele. Depois descobri que podia usar o mediquês de outros modos e me tornei exímia em escrever as anamneses, os exames e em traduzir a luta política das pessoas vivendo com HIV em laudos e relatórios para obterem os “benefícios”, que de benesse não têm nada… Descobri que o mediquês podia ser usado pra resistir e pra fuder o sistema. Hoje meu carimbo habita uma bucetada de processos judiciais contra a falta de acesso à saúde, e até contra o despejo de pessoas de movimentos de luta por moradia.
Volta e meia recebo ameaças, principalmente de advogados. Quero que se fodam. Se for pra perder, vou perder o registro lutando.
Voltando à história, mais tarde me reconheci como educadora popular. Professora, eu era desde os 14. Mas sempre educadora popular. Só não sabia esse nome. E fui mexendo, mexendo com as palavras, até hoje poder trilhar com outras pessoas os caminhos de escritas escarnadas, incorporadas, até às vezes numa tal academia, onde ando ocupando as margens. E muitas vezes escrevendo junto também os prontuários com as pessoas que me cuidam e que cuido, e muitas vezes a serviço de infiltrar nessa merda de meio acadêmico outras existências, seres, vidas e corpas, que como eu, são fora de lugar porque se recusam a ocupar o lugar que lhes foi determinado.
Eu quero é voltar a botar meu bloco na rua e a escrever poesia na areia de uma praia, pro mar vir e levar pra minha mãe Iemanjá.


Dani Moraes
Mulher gorda cis, bissexual, feminista, amante de palavras, músicas e cães. Sou educadora popular e trabalho como médica e pesquisadora em Saúde Coletiva. Mestrado e doutorado em Saúde Pública e sou tutora do Galak e da Pedrita.