12 de junho também é dia de celebração dos corpos gordos
Se você perguntar o que é o amor, como na música talvez a gente não saiba responder com exatidão e nem explicar muito bem o que é… Mas o amor nos parece ser um desses fenômenos complexos, uma força que movimenta a vida e articula todas as relações, seja pelo seu excesso ou falta. A gordofobia leva ao erro de achar que não merecemos afetos, mas nesse dia 12 de junho, nós escolhemos ouvir narrativas contra hegemônicas. Histórias de amor para celebrar esse sentimento tão plural. O “Dia dos Namorados” também é uma data de amores gordos.
Reencontros e o amor numa sociedade cisgenera

Tom Grito, 33, é carioca, não binário, trans, poeta e educador físico. Passou por situações cruéis onde teve o corpo hipersexualizado e usado, mas nunca assumido diante da sociedade. “Eu costumava dizer que tinha 10 interessados em transar comigo depois dum show do Catra mas ninguém que me levasse de mãos dadas pra assistir um show de jazz” relembrou.
Em meados de 2017, Tom reencontrou uma antiga conhecida, Debora. Ambos adoravam roda de samba e o universo calhou de uni-los novamente. Debora é uma mulher preta e gorda. Tom é trans, não binário e gordo. Corpos dissidentes e que despertam olhares curiosos, mas sem a real intenção de apreciação. Tom conta que é inevitável que uma sociedade cisgenera e branca questione suas existências e afetos. “Mas a gente não costuma se incomodar com isso, exceto se a pessoa vier comentar ou dar opinião, aí ela com certeza vai obter reação. A gente não se deixa mais silenciar”.
Mesmo com as inseguranças com o corpo, Tom não deixa de curtir a companhia de Debora em locais públicos. “A gente gosta de praia, apesar da dificuldade com o corpo, a gente também gosta dessa afronta, de ocupar os espaços públicos, da liberdade de existir, habitar e ocupar” contou.
Apesar de todos os traumas e gatilhos do passado, Tom encontrou em Debora uma nova vontade de ser feliz e se permitir amar. “O meu encontro com Débora faz com que a gente se estimule e incentive a alcançar nossas máximas potências. Eu me permiti assumir minha identidade também após esse relacionamento por conta de todo apoio e amor que obtive dela nesse processo”.

Não aceitem menos! Construindo relacionamentos saudáveis

Gabi Menezes, 30, paulista, gorda, cis, influenciadora e psicóloga. Como a maioria das pessoas gordas, Gabi cresceu com os familiares reproduzindo os comentários gordofóbicos a respeito do seu corpo. \”Sempre ouvi – principalmente da minha família – que com o corpo que eu tinha eu nunca iria encontrar alguém que gostasse de mim\”. Os comentários, mascarados em tom de cuidado e preocupação, reforçam uma ideia de que o amor é algo ligado diretamente ao padrão de beleza e até pacificarmos (em algum nível) nossa relação com próprio corpo, acabamos acreditando que não merecemos afeto. \”Em algum momento na faixa dos meus 20 anos eu desencanei, já era rebelde desde a adolescência mas pensava que, se não iriam gostar de mim pelo corpo que eu tinha, era melhor ninguém gostar mesmo\”, explica.
Em um relacionamento de oito anos, Gabi e Tiago namoraram durante um ano a distância, ela terminando a faculdade em Araçatuba e ele morando em São Paulo. Hoje construíram uma família, tem um filho, Nicholas de quatro anos e dois gatos, Gael e Tequila. \”Eu e Tiago já éramos conhecidos, depois de um ano, quando ele não estava mais morando em Araçatuba, que fomos conversando mais e vendo que tínhamos muitas coisas em comum\”. Estar aberto para receber o amor passa por um grande processo de autoconhecimento, respeito com os próprios limites e traumas. \”A gente vive num relacionamento sem julgamentos e zelando sempre pelos cuidados e saúde um do outro, principalmente a mental\”.
E esse grande processo pode ser fortalecido por laços de companheirismo. \”O que eu mais pude aprender e aprendo com o nosso relacionamento é não ligar tanto para o que as outras pessoas diziam ou pensavam ao meu respeito, basicamente o Tiago me ensinou a quebrar (já que as vezes eu apertava só de leve) o botão do foda-se!\”, a psicóloga complementa, \”Me ensina constantemente que eu não devo ficar me justificando e nem me julgando – principalmente no quesito da maternidade\”.
Associamos a solidão ao fracasso no amor, mas precisamos de refletir sobre o comprometimento afetivo com a nossa existência. \”Consegui encontrar um cara legal, que me respeita, me entende e acima de tudo, me ama. Se não fosse pra ser assim, eu preferia estar sozinha, real. Não aceitem menos pela sociedade achar que você merece menos! Merecemos viver de maneira romântica, da mesma forma que qualquer pessoa num relacionamento saudável\”.

Mono e não-mono, as muitas formas de amar

Flávia Carves, 30, paulistana, gorda, cis, bissexual e multiartista. Se entendeu como não-monogâmica após um processo longo de autoconhecimento, onde algumas feridas do passado ainda a machucavam. Flávia está em um relacionamento com Hugo desde 2015, e quando se conheceram, ambos questionavam essa estrutura pré estabelecida entre casais, “Depois que nos conhecemos, foi maravilhoso, porque ele também questionava tudo o que eu também questionava, mas também foi com tempo e muito diálogo que fomos chegando a respostas pra não-monogamia política” contou.
A sociedade nos ensina a ser, vestir, falar tudo aquilo que considera correto e quando você não se enquadra nisso, de certa forma é excluída. Não foi diferente com Flávia. “O meu autoconhecimento com a vivência da não monogamia se desenvolveu como nunca, e se conhecer dói. Mas depois você vê o quanto que é recompensador saber os seus limites, entender a origens de sentimentos ruins e trabalhar isso consigo e com as pessoas que você se relaciona de uma maneira muito mais fluida”.
A multiartista se apaixonou por Kali e, em setembro de 2020 passa a morar com eles, compondo uma família, um tipo diferente e possível de amor. “Essa é a minha família, são pessoas que escolheram estar comigo pra construir o dia a dia e eu escolhi estar com eles (Hugo e Kali). Então, acho que a primeira coisa que as pessoas precisam pensar é: eu estou só fetichizando ou sexualizando essa relação? Porque se sim, as pessoas estão muito longe de entender o que é uma relação. Seja monogâmica ou não”.
Segundo Flávia, a monogamia deveria ser tratada como o que ela realmente é, ou seja, como estrutura social, “Não é sobre quantidade de pessoas, é sobre liberdades de escolhas individuais com perspectivas coletivas pensando em sociedade” enfatiza e complementa que “Amor é escolha. É liberdade trabalhada. É estar e ser. É diálogo. É troca. É história. É sentimento. É cheiro no cangotinho ou abraço bem dado no fim do dia”.



Um chamado ancestral para cura

Jész Ipólito, 29, paulista mas mora a quatro anos em Salvador, graduanda em Gênero e Diversidade pela UFBA, idealizadora do blog \”Gorda e Sapatão\” e ativista na Articulação Nacional de Negras Jovens Feministas (ANJF) – núcleo Bahia. Aline é mestranda em Geografia na UFBA e se conheceram em um Congresso da própria Universidade. \”A gente trocou olhares no Congresso da UFBA em 2016, depois nos encontramos e conversamos mais na ocasião de um debate sobre gordofobia e racismo\”.
O racismo estrutural invisibiliza as vivências das mulheres negras, as deixando mais vulneráveis para diferentes formas de violência, sendo uma delas a negativa de afetos. A junção do marcador \”raça\” com o marcador \”peso\”, aprofunda as dinâmicas preterimento. \”Eu sempre vivenciei situações de preterimento. Ser gorda e negra nessa sociedade racista e gordofobica é viver a margem das possibilidades de afeto\”, conta Jész.
Mas encontrar amor em outra mulher negra e gorda é uma possibilidade político afetiva de viver dias melhores. \”Nossa relação tem representado um chamado ancestral para cura, olhar para si e reconhecer as fraquezas, as dores, as incertezas… E juntas nós temos nos transformado todos os dias. Através do diálogo muito aberto, direto e verdadeiro, dizendo sempre quando algo não está bem. É uma intimidade muito profunda conseguir falar aquilo que mais te assusta para outra pessoa, essa possibilidade só chega com a construção de uma relação baseada na insistência: é preciso dizer com todas as palavras para a outra pessoa “Eu estou aqui com você, quando quiser conversar eu estarei aqui”. E aí vai sedimentando o amor, a confiança, o respeito e outros elementos\”.
A ativista explica que o cotidiano do relacionamento é a melhor forma de se manter junto e superar alguns traumas e medos que o racismo e a gordofobia imprimem sobre suas vidas. \”A manutenção do nosso amor é todo dia, planejando nossos futuros, recalculando a rota quando for necessário, fazendo pequenos gestos de cuidado tipo fazer uma comida gostosa pra ela, ou simplesmente encher a garrafinha de água e deixar na mesa dela quando tem aula rolando. Enfim… cotidiano simples e afetivo nos pequenos detalhes\”.
Jész fala ainda sobre imaginar formas de aceitar o merecimento de afeto e viver ele plenamente. \”Quando a gente consegue estabelecer o autocuidado como premissa maior, as coisas acontecem sem que a gente perceba que estão acontecendo\” e conclui \”Se ame em primeiro lugar. Encontre sua luz, seu brilho! Defina suas metas e objetivos, trace sua rota para responder a pergunta “O que eu quero conquistar?”, e isso não é sobre trabalho, é sobre todos os aspectos da vida Confie em você, na sua energia, na sua fé!\”.

Vivemos um tempo tão difícil, da conjuntura à pandemia da Covid-19, mas o amor tem fortalecido nos momentos mais improváveis. Talvez o amor seja isso, um levante revolucionário contra opressões, negacionismo, conservadorismo. Uma vontade política de mudar a perspectiva dominante. Como escreve bell hooks no texto “Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas”:
“Para abrirmos nosso coração mais plenamente para o poder e a graça do amor, devemos ousar reconhecer quão pouco sabemos sobre ele na teoria e na prática. Devemos encarar a confusão e a decepção em relação ao fato de que muito do nos foi ensinado a respeito da natureza do amor não faz sentido quando aplicado à vida cotidiana. Observando a prática do amor no dia-a-dia, pensando em como amamos e no que é necessário para que nossa cultura se torne uma cultura em que a presença sagrada do amor possa ser sentida em todo lugar”.
bell hooks, \”Tudo sobre o amor: Novas Perspectivas\”, 2020 (página 42).
Agradecemos imensamente Tom, Gabi, Flávia e Jész por dividirem suas histórias. Apesar do Dia dos Namorados ser uma data comercial (e convenhamos um cadinho brega) acreditamos no poder de amar e mudar as coisas.
Texto de Karen Florindo e Tamyres Sbrile

@flor_rindo nas redes, 24 anos, feminista. De São Bernardo tentando sobreviver ao caos da cidade de São Paulo. É graduada em Ciências Sociais, pós-graduanda em Política e Relações Internacionais e entusiasta dos estudos decoloniais. Trabalha com pesquisas de mapeamento socioeconômico e elaboração de políticas públicas. Uma das idealizadoras do Ciclo Mexerica (@ciclomexerica), Grupo de Estudos sobre Corporalidades Gordas, Afetos e Resistência, que surgiu após a primeira turma do curso #InsurgênciasGordas, como forma de construir laços e fomentar conhecimentos gordes.

Tamyres é jornalista, criadora de conteúdo, escritora e ativista. Ela aos 23 anos começou em 2019 produzir conteúdo no @itstamyres falando sobre amor próprio, autoconhecimento e Gordofobia. Nascida e crescida em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, encontrou na internet uma maneira de ressignificar e entender questões como sendo uma mulher gorda. Usa as palavras para expressar sentimentos e vivências que marcaram a história dela.