Amor próprio, propriedade de quem?

Enquanto eu chorava por me sentir sozinha, os outros diziam : você precisa aprender a se amar
Enquanto eu sangrava pelos cortes provocados pela minha existência, os outros diziam : você precisa aprender a se amar.
Enquanto eu não cabia em espaço nenhum, os outros diziam: você precisa aprender a se amar.
A individualização do amor e a garantia de que só o amor próprio salva é como culpabilizar a vítima pelas inúmeras violências que ela está sujeita por apenas existir.
Amor próprio virou moda
Está estampado em placas por todo o mundo virtual
Faz parte dos discursos motivacionais
Amor próprio é meritocrático
E se você não é feliz, é sua culpa, que não batalhou o suficiente para aprender a se amar
Mas de que amor eles tanto falam?
Do amor que aceita?
Que amor próprio que querem de mim?
Que reconhece particularidades?
Que me vê enquanto sujeito?
Que respeita meus direitos?
Que reconhece que eu existo?
Não. Eles falam do amor próprio que se encaixa em padrões para seguir uma norma que não fui eu que inventei.
Vou me amar se fizer dieta, acordar as 5 horas da manhã, toneladas de exercício, ser produtiva e dar meu sangue por um trabalho que não desejei, colocar todas as virgulas em meu texto, alisar meu cabelo, disfarçar meu corpo gordo, pintar meu rosto com todas as maquiagens disponíveis, mas sem parecer exagerada, ter algum contato espiritual, mas de preferência aquele que é aceito. Terreira de umbanda? Nem pensar! Isso não é de Deus.
O amor próprio é condicionado a variantes normativas.
Tadinha, engordou tanto, anda desleixada, não se ama o suficiente.
Se o amor é próprio, logo ele é minha propriedade e com isso devo saber mais de mim do que os outros.
Me amar não é sorrir o tempo todo. É aceitar minhas sombras e fazer elas gritarem para o mundo.
Me amar é um processo de desconstrução dos padrões normativos para aceitação de si.
Me amar é uma eterna captura da minha subjetividade e luta contra esse aprisionamento.
Me amar é saber que só é possível encontrar força, quando minha voz ecoa juntamente com a voz de um coletivo.
Me amar é saber que reconhecer e ser reconhecida são faces da mesma moeda.
Me amar é adorar meu sangue, meus cortes, minhas lágrimas, meu corpo que expande e precisa de espaços que caibam mais.

Rossana Bogorny Heinze
Mulher cis, gorda, feminista, militante, psicologa clínica e social, pesquisadora e escritora. Mestre e doutoranda em Psicologia Social e institucional pela UFRGS. Apaixonada pelos estudos decolonais e por escritas de mulheres do sul global. Trabalha com intervenção fotográfica e busca nas invisibilidades formas de tornar visíveis as narrativas, que são resistência de vida nesse mundo normativo. Estuda principalmente questões de gênero, política, ciência e ética, atualmente tendo sua tese voltada para o trabalho de mulheres pesquisadoras na resistência.
_____________________________________________________________________________ Texto escrito a partir do exercício: \"Minha escrita é potência\" realizada para o encerramento da participação na Monitoria Escritas Afectivas coordenado pela Prof. Dra. Malu Jimenez.