O caminho de reconexão com a escrita está profundamente ligado ao processo de me reencontrar comigo mesma. Houve um tempo em que a escrita parecia distante, as palavras não fluíam, e qualquer tentativa de expressão se desvanecia antes de ganhar forma. Cada tentativa frustrada carregava os bloqueios que me foram impostos desde a infância. No entanto, ao me reconectar com minha própria história, percebo que é única, imensa e que merece ser contada. A escrita, então, deixa de ser um fardo e se transforma em um encontro comigo mesma, com minhas vivências e com as de outras pessoas. Ela se torna uma prática afectiva, potente e revolucionária.
Cresci acreditando que a escrita era um privilégio de poucos. A escola me ensinou a temer o erro, a evitar a página em branco com medo de não estar “correta”. A escrita, que deveria ser um meio de liberação, tornou-se um reflexo das inseguranças que carregava, especialmente por causa dos meus muitos erros gramaticais, que sempre me deixaram com medo de expor minhas ideias.
A relação entre a escrita e o meu corpo sempre foi marcada por um conflito interno. Ser uma mulher gorda em um mundo que frequentemente marginaliza vozes como a minha fez com que eu me sentisse insegura em relação à minha expressão. Durante meus anos de faculdade e com meu Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvi uma pesquisa sobre o corpo gordo feminino, e essa experiência foi transformadora. Ao explorar as narrativas e as vivências de outras mulheres gordas, percebi que minha voz e minha história também eram válidas e possíveis. Através dessas histórias, fui capaz de refletir que cada corpo carrega uma história única, e que as experiências individuais são narrativas poderosas.
No curso “Escritas Afectivas”, compreendi que meu lugar de fala é, antes de tudo, um lugar de potência. Aprender a valorizar essa perspectiva foi fundamental para que eu me sentisse à vontade para escrever. Os erros gramaticais que tanto me intimidaram passaram a ser vistos como parte do processo, e não como barreiras intransponíveis. Passo a ver a escrita como um espaço de experimentação.
Ao longo da minha jornada, percebi que as dores que carrego não são apenas marcas físicas, mas histórias profundas que habitam meu corpo. Ser uma mulher gorda em um mundo que muitas vezes marginaliza a diversidade de corpos traz um peso emocional que se manifesta em traumas e inseguranças. Junto com outras mulheres, revisitamos e compartilhamos nossas dores.
Vivo em um corpo constantemente julgado e analisado pela sociedade, e muitas das dores que carrego vêm desse lugar de exclusão e invisibilidade. Minhas cicatrizes não são apenas físicas, mas emocionais, resultado de anos ouvindo que meu corpo era errado ou não merecia ocupar espaços. Durante o curso, fui guiada a revisitar essas feridas, a confrontar não só a dor que veio do olhar alheio, mas também os medos e inseguranças internalizados.
Escrever sobre essas dores foi como passar o dedo em cicatrizes que o tempo suavizou, mas que ainda carregam lembranças intensas. Descobri que há uma cura em dar nome a esses sentimentos, em transformar em palavras a dor de não ser aceita e a luta por existir plenamente em um mundo que tantas vezes nega essa possibilidade. Minha escrita vem se tornando um espaço seguro, onde essas cicatrizes podem existir sem vergonha, onde posso ressignificar a narrativa que por tanto tempo me foi imposta.
Cada frase que escrevo é uma forma de costurar as feridas deixadas por anos de gordofobia, mostrando que essas cicatrizes fazem parte da minha história, mas não definem minha capacidade de ser, de amar e de criar.
Hoje, ao olhar para minhas cicatrizes, vejo não apenas as marcas de dor, mas também a força que carrego ao transformar essas experiências em palavras. A escrita me da o poder de comunicar minha vivência como mulher gorda de forma honesta e vulnerável, sem medo de expor o que antes parecia inominável. Cada palavra é um ato de resistência, um testemunho da minha jornada e da minha superação.


Thais Borducchi
Nasceu em 1993 em São Paulo, capital. É bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e em sua produção artística investiga a temática da gordofobia, empregando uma variedade de técnicas para explorar tanto questões que envolvem o preconceito enfrentado pelas mulheres gordas quanto a importância de celebrar suas formas singulares. Em seus trabalhos, formas voluptuosas e volumes proeminentes representam a exuberância e a diversidade dos corpos. Nos últimos anos participou de exposições coletivas com obras autorais. Também trabalha como Diretora de Fantasia na Escola de Samba Acadêmicos de São Jorge, e estagiou com o carnavalesco Sidnei França na Escola de Samba Águia de Ouro de São Paulo.