É possível um feminismo Gordo?

“Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”. Escolhi esse pensamento de Audre Lord para iniciar nossa reflexão nesse texto sobre a pergunta/título que proponho para pensarmos juntes: É possível um feminismo gordo?

Olhar hoje para o movimento feminista, é entender que existem muitos feminismos, com muitas pautas, realidades e subjetividades distintas. Movimento este, percebido por mim como construção de saber e proposta para um mundo onde as mulheres não sejam inferiores aos homens é, está, ou deveria estar em concordância entre todas nós, porque é de opressão que estamos falando, é de violência de muitas maneiras, mas é de agressões e ódios a todas as mulheres nesse sistema cisheteronormativocolonial que me refiro.

Entendo essa liberdade que Audre Lord nos propõe a pensar como a liberdade dessas opressões violentas sistêmicas. Com certeza que os recortes sociais marcam mais violência, e é exatamente por isso que gosto de pensar em muitos feminismos, no sentido de frentes e pautas. Somos diversas e nossas reinvindicações e lutas também, mesmo quem ainda não se autodenomine feminista, já que a luta pela causa feminina ultrapassa a própria história do movimento, já que se pensarmos nas mulheres que queimaram em fogueiras pela inquisição já eram feministas sem mesmo nomear, o que quero dizer é que existem muitas mulheres e grupos envolvides pela emancipação feminina.

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Existe construção de novos saberes pulsando dentro e fora dos coletivos e mulheres que se autodenominam feministas, existe propostas e lutas que caminham juntas e não separadas. Tenho visto que não é preciso se autodenominar feminista para lutar pela participação de mulheres na política, sobre a autonomia de nossos corpos, contra a violência estrutural a nossas mães, avós, bisavós, filhas, etc. Isso não quer dizer que se autodenominar também não seja político, já que o feminismo é um posicionamento político, de (re)existência.

Renata Aspis explica que (re)existir é um “constante movimento de afirmar a vida que nos está sendo constantemente subtraída. (Re)existir, insistir em existir, conjurar a formação do Estado no pensamento, tornar o pensamento uma máquina de guerra.”

Dessa maneira, volto lá na afirmação de Audre Lorde no começo do texto: “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”, a gordofobia é violência de gênero, é violência estrutural, as correntes que as mulheres gordas carregam precisam ser levantadas, conhecidas, conversadas entre todas nós.

Posto que mulheres gordas sofrem gordofobia todos os dias, muitas vezes ao dia, como forma de sobrevivência existe uma necessidade de transformar a dor em algo, muitas vezes em mais dor. Contudo vivi e vi muitas experiências em que o sofrimento pode ser ressignificado em textos, lutas, reposicionamentos no mundo, coletivos, livros, eventos, arte, poesia, etc.

Aprendi com o feminismo negro e algumas ativistas gordas que é possível, necessário e revolucionário criar teorias a partir de corpos que são marcados pela dor, humilhação e exclusão, transformando todo ódio e raiva à sociedade em luta e se posicionando no mundo de outra maneira, de modo que viver seja um ato revolucionário.

A partir de nossas experiências, é possível reinventar o jeito de estar no mundo. É um processo demorado e lento, mas existem mulheres como eu, consumindo e fazendo ativismo numa nova proposta de entender seu corpo gordo em sociedade e consigo mesmas, propondo novos saberes sobre nossas corporeidades, sobre ter uma vida com mais respeito e dignidade.

Trazer esse debate como proposta de reflexão que o feminismo gordo já existe e resiste na luta diária de mulheres como eu que sofrem a gordofobia desde suas infâncias e se reinventam todos os dias para sobreviverem a tanta violência contra nossos corpos.

O feminismo gordo existe e submerge de mãos dadas ao feminismo decolonial, da subalternidade, das periferias, dos saberes locais, da subversão do imposto: negras, indígenas, gordas, maricas, trans, sujas, sudakas, defiças, lesbicas, lokas, putas, todas as que estejam a margem do que a sociedade colonial enaltece e constrói como padronização do que é ser “normal”, “bela” e “produtiva”, todo esse conjunto de idealizações que nos subalternam, e classificam modos de vida como superiores e inferiores. Nossos saberes rompem com essa lógica porque são construções de (re)existências para a sobrevivência de forma criativa ao projeto civilizatório de conquista do pensamento, do corpo, dos saberes.

Nosso feminismo enaltece as vozes esquecidas, invisibilizadas que se opuseram aos mandamentos dentro da lógica heteronormativa, que impõem um regime político tecnológico da reprodução de corpos. Em oposição, subvertemos esse raciocínio e recriamos novas propostas de saberes, registros, e outras maneiras de ser e estar no mundo, reivindicando a descolonização de nossos corpos, desejos e saberes. “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”. Audre Lord

Para Consultar:

Gloria Anzalduá. COMO DOMAR UMA LÍNGUA SELVAGEM. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Difusão da língua portuguesa, [s. l.], n. 39, p. p.297-309, 2009. Disponível em: http://www.campogrande.ms.gov.br/semu/wp-content/uploads/sites/26/2019/10/15-anzaldua%C2%A6%C3%BC_como-domar-uma-lingua-selvagem.pdf

Renata Lima Aspis. Resistências nas sociedades de controle: um ensino de Filosofia e subversões. In: AMORIN, Antonio Carlos; GALLO, Silvio; OLIVEIRA

JR,Wenceslao Machado de Oliveira. (Org.) Conexões: Deleuze e imagem e pensamento e… Petrópolis, RJ: De Petrus; Brasília, DF: CNPQ, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pp/v21n1/v21n1a07.pdf

Luciana Maria de Aragão Ballestrin. Feminismos Subalternos. Rev. Estud. Fem. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/42560

Audre Lorde. Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo, 2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/os-usos-da-raiva-mulheres-respondendo-ao-racismo/

María Lugones. Colonialidad y género. In: YALA, Abya. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales. [S. l.]: Editorial Universidad del Cauca, 2014. cap. 1. Debates sobre colonialidad del género y (hetero) patriarcado. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/298427007_Tejiendo_de_otro_modo_Feminismo_epistemologia_y_apuestas_descoloniales_en_Abya_Yala

Maria Luisa Jimenez Jimenez. Mulheres Gordas numa sociedade lipofóbica, merecem a sororidade de todas e todes, 2018. (Blog/Facebook). Disponível em: https://www.todasfridas.com.br/2018/07/02/mulheres-gordas-numa-sociedade-lipofobica-merecem-a-sororidade-de-todas-todos-e-todes/

Maria Luisa Jimenez Jimenez. Mulheres e saberes subalternos: por uma episteme feminina, 2018. (Blog/Facebook). Disponível em: https://www.todasfridas.com.br/2018/06/21/mulheres-e-saberes-subalternos-por-uma-episteme-feminina/

Maria Luisa Jimenez Jimenez. Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos. 2020. Doutorado (Programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO) – Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Cuiabá, MT, Brasil. Disponível em: http://lutecomoumagorda.home.blog/tese-de-doutorado-lute-como-uma-gorda-gordofobias-resistencias-e-ativismos/

Esse texto foi publicado no TODAS FRIDAS em 2020.

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Poder transformar aquilo que te faz mal em algo criativo vem ao encontro de um trabalho do feminismo de aceitação e entendimento do próprio corpo, de muitas maneiras e buscas. Entender que as pessoas que te reprovam e não te aceitam são as que precisam de ajuda, pois se incomodam com algo e não sabem bem o porquê. “

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Este livro é resultado de sua pesquisa que teve origem em sua tese de doutorado, a qual propõe análises teóricas para investigar a estigmatização institucionalizada sob a qual os corpos gordos são colocados. Lute como uma gorda está disponível para venda e comprando por aqui você recebe uma dedicatória especial da autora