Acende a luz, acende tudo! Que regimes de visibilidades gordas têm sido construídos para si?
Os contextos socioculturais ocidentais contemporâneos têm assegurado um intenso, amplo e difundido regime de visibilidade negativa para o corpo gordo, que o delineia e o anuncia o tempo todo como algo a ser corrigido e combatido, especialmente pelos meios de comunicação de massa e sob justificativa de saúde. Esse estado de atenção permanente sobre nossas corpas gordas, especialmente as feminines, constitui para nós uma pedagogia da abjeção e da doença a partir de nossos pesos e formas, corroborando com a produção de estigmas e com certa concepção de que somos objeto do qual todos devem se afastar. Numa mecânica bastante engenhosa, inclui-se nesse fluxo dos afastamentos as próprias pessoas gordas, que em grande maioria e durante grande parte da vida lutam contra si, violando a própria carne no uso dos mais variados recursos médicos e estéticos, visando construir uma outra versão de si socialmente branda, aceitável e permanentemente vigiada.
Em síntese, podemos perceber que esse regime de visibilidade negativa configura certa sensibilidade coletiva que passa a conceber inequivocamente os corpos gordos como risco, perigo e perigoso, desviante, feio, anormal e não desejável.
Contudo, neste cenário e no fluxo do estabelecimento de uma cultura gorda, que aposta na criação de narrativas próprias a partir das vivências e das experiências das pessoas gordas, vemos surgir um movimento bastante interessante nas redes sociais da internet, que operam a fotografia, especialmente o autorretrato como dispositivo que cria âmbito para a circulação das corporalidades gordas. Movimento aqui, deve ser compreendido num sentido mais amplo, visto que se apresenta tanto organizado sob o mote da militância antigordofobia, ou como expressão da arte, e, mais comumente, como usos informais e autônomos, porém não menos políticos, à medida que compõem e disputam um novo regime de visibilidade para gordes, incorporando esses ambientes como extensão da própria pessoa, como nos provoca pensar a filósofa Donna Haraway em seu manifesto cyborg, e ao mesmo tempo corporificando a experiência digital, potencializando os fluxos de on para off line, como reflete a antropóloga Christine Hine.
Decerto que algumas pessoas bem intencionadas alertarão sobre a possibilidade de objetificação dos corpos femininos gordos, mobilizadas pelo excesso de autorretrato. Quanto a isto, é bom pensar junto com a escritora e ativista gorda estadunidense, Jess Baker, que observa e analisa as selfies especificamente no universo das mulheres gordas, argumentando que é preciso ir além da ótica feminista universalista e da crítica narcisista. Vale de nossa parte um esforço para perceber a selfie e as fotografias como uma ferramenta importante para as mulheres gordas, especialmente quando estas são negras e ou gordas maiores, visto que são as mais invisibilizadas e visibilizadas negativamente pelo regime normativo. Muito expressivamente para essas gordas, a experiência da fotografia parece organizar dois elementos constitutivos de um regime de visibilidade: a capacidade de reconexão consigo mesmas e o sistema de elogios, os quais não podemos deixar escapar enquanto estratégia na luta contra nossos apagamentos.
É bom pensar que o close de si, através do autorretrato, ou a fotografia convencional têm servido para cultivar a autoadmiração e amor próprio como direito que nos é roubado ao longo de nossas vidas. E como os filósofos têm nos ajudado a dar inteligibilidade para a experiência, não será diferente, aqui, com Agamben & Asseman, que refletem o fato do retrato sempre desafiar seu dono a um exercício de reconexão. Para os autores, entre o momento da percepção da imagem e o reconectar-se nela há um intervalo de reconhecimento ou desconhecimento, aprovação ou reprovação, onde se projetam as formas refletidas. E ao fim desse intervalo, reconhecendo-se e aprovando a imagem, esta nada mais será que a expressão do amor que cada ser deseja para si, preservado e comunicado no próprio ser; um momento no qual a imagem não é apenas o ser, mas, mais que isso, uma espécie feliz e desejada dele.
Eu concordo também, com Jess Baker que afirma o lugar da fotografia como seguro para a experimentação, quer dizer, a selfie, em especial, configura um dispositivo de aprendizado, na qual antes da publicação normalmente são feitos vários cliques, testadas diversas poses e ângulos, até o momento que a aprovação pela foto surge, e junto com ela uma segurança sobre si e o corpo se estabelecem, a cada breve instante, e sucessivamente na repetição de cada breve instante.
Nesse sentido, considerando que a medicina, a indústria e o mercado controlam sobremaneira as formas corporais femininas, e com estabelecem um padrão inatingível de saúde e beleza, que tem prejudicado o modo como percebemos nossos corpos, as selfies têm permitido deslocamentos sobre o que é belo, e tensionado também a noção de corpo saudável. Nesses percursos, parece firmar-se um debate entre beleza (como atributos disponíveis e reais) e a boniteza (como aquilo ofertado pela tecnologia digital e médica), um debate sobre o exclusivismo da forma em que se registra o belo e em oposição à diversidade como política. Assim, podemos compreender as selfies e as fotografias como ferramentas de ‘reclamação’ e validação das corpas gordas.
No âmbito das lutas feministas, reconhecer esses movimentos e deslocamentos significa imprimir uma gramática própria para as mulheres gordas e para a performance dessas feminilidades, considerando que, se por um lado a boniteza e os cultos narcísicos têm subordinado e subjugado todas as mulheres a um único padrão corporal e de beleza; por outro lado, no caso das selfies e fotos pelas quais circulam corpas gordas, esse lugar subalterno é questionado pela descoberta ou possibilidade da beleza para corpos historicamente privados dessas virtudes, num processo muito particular de gestão das próprias imagens. Com ou sem filtros, ainda que seguindo um tutorial nativo, as narrativas que essas imagens constroem, a ocupação de espaço que elas exercem e a potencialização dos fluxos entre redes digitais e presenciais, tensionam os regimes normativos da forma e do peso. Esse parece ser o movimento consistente possibilitado pelas selfies e fotografias nas dinâmicas de reconexão das mulheres gordas consigo próprias. Nesses percursos, diversos tamanhos se expõem, corporificando experiências que revalidam e ressignificam seus corpos, com potencial para reposicionar suas vivências muito além da abjeção e da doença.
Além deste percurso da reconexão, o vitrinismo, como eu nomeio o mecanismo contemporâneo de sociabilidade firmado na exibição da imagem e sua resposta pública, consiste outro ponto de importância, porque dele se desdobra um sistema de elogios, que vai constituindo os sinais de ampliação do leque de corpas válidas. Como disse Oscar Wilde, “o verdadeiro mistério deste mundo é o visível, não o invisível”, e nesse sentido, o imediato movimento de revelação ou ampliação de uma diversidade corporal, faz recair sobre a norma, a desconfiança acerca de seu status de única forma possível para ser belo, saudável, forte e útil.
Os elogios ou atribuições de likes, como temos observado, ocorrem de forma diversificada entre gêneros e grupos étnicos e etários, de modo que o movimento vai tomando forma de pauta pública de amplo interesse. Mas entre mulheres está o ponto que considero bastante importante, isto porque, entre elas, se estabelece uma solidariedade que consolida apoio mútuo, criando um clima de afago e aprendizado coletivo, além de reforço positivo sobre e para seus corpos. A exibição, além de provocar elogios, tem possibilitado a prática de tutoriais, que fundam uma espécie de ‘clube’ de dicas, referências pessoais e narrativas encorajadoras. É como se uma fosse o espelho da outra. E como tem sido interessante, amoroso e libertador se ver no corpo da outra, se sentir no balanço do corpo da outra, decidir tomar posse de nossos corpos, quase que invariavelmente através da ponte que o corpo dessa outra mulher gorda cria para cada uma de nós e que nós criamos para cada uma outra gorda.
Essa imagem e esse corpo ponte oportunizam vivências e outras narrativas, contam as nossas histórias, de um lugar que resiste à cultura de massas que acomoda para nossos corpos, um futuro condicional, como afirma Wooley (2016) pois operam na subjetividade em torno do corpo irreal da propaganda. O que eu quero dizer, é que esse movimento das imagens gestadas por pessoas gordas, liberam nossas possibilidades experimentativas, à medida que não há a condição de ser magra para realizar nada mais, no sentido que tudo pode ser realizado agora e com o corpo que temos, gordos, muito gordos, gordos menores e não magros.
O vitrinismo de mulheres gordas têm proporcionado a visibilidade para o invisível. A selfie e seus roteiros de uso nas interações sociais um regime de visibilidade positiva para corpos colocados ‘fora de circulação’ pela cultura de massa.
Um caso dentro do caso: as modelos plus size e a ambivalência do molde
Em termos de visibilidade, é verdade, também, que a sociedade de consumo tem instituído para as mulheres gordas a categoria plus size, nicho de mercado que tem favorecido a circulação de corpos gordos. Se por um lado, a fatia do mercado cedida às gordas habilita e torna aceitável certo tamanho; por outro lado, ele não faz concessões quanto à esbelteza (silhueta), e mantém excluídas as mulheres com abdome mais abaulado, desproporcionais na relação cintura/quadril e com mamas flácidas, como é o mais comum entre mulheres gordas. Tal fato gera um mal-estar entre muitas mulheres gordas, que se inspiram nas modelos por seus tamanhos, mas que reconhecem um tipo de opressão de gorda para gorda incutida nesta modalidade de “liberação gorda”, incorrendo a substituição de um padrão por outro, e sobre a pressão de conformar uma norma de formas e proporções, sob o risco de se afastar do feminino desejável. Afinal, um corpo sem silhueta, sem as proporções esperadas e os adereços certos, é um corpo desviado da plasticidade, a qual se espera performar o gênero feminino.
Em vez de conformar o lugar designado na ordem do gênero, o corpo muito gordo confundirá suas fronteiras, sendo esta uma chave para pensarmos sobre a conjunção que o mantém invisível, na sua performance e gênero, tomando de empréstimo as noções de performatividade da Butler. Radicalizando esta crítica, Jess Baker, nossa maior referência nesta reflexão, afirma que ‘o mercado plus size pode ser compreendido como um convite para se sentar uma gorda, branca e proporcional numa mesa de mulheres brancas e magras’. Para a autora, esse convite acomoda aspectos da norma e recusa qualquer diversidade (de idade, racial ou dos tipos de gordas). Enfim, a abertura de um nicho de mercado para um tipo de gorda que parece ser a versão ampliada dos registros normativos para peso e forma, não tem favorecido a construção de um senso de igualdade para a diversidade de sujeitos de variados pesos e tamanhos. Para a autora, longe de um progresso, essas brechas aprofundam a diferença e a estigmatização das formas mais gordas ou menos esbeltas. Tal ambivalência do plus size como nicho de mercado, constitui um lugar de visibilidade, mas também de reforço de normas e padrões. Não obstante, tal ambivalência parece potencializar a divulgação das suas próprias incongruências, além de ideias acerca da dissidência da norma sobre o corpo das mulheres. Voltando à metáfora de se sentar à mesa das ‘normais’, essa pode ser uma brecha para trazer mais cadeiras, embaralhar sua distribuição e o modo de sentar nelas.
Nesse contexto, talvez com um diferencial de autonomia a respeito dos ditados do mercado, a selfie e o sistema de elogios das gordinhas e seus admiradores favoreçam a construção de uma identidade, corpo e comportamento ‘de gordinha’, configurando âmbito seguro para que corpos desviantes se desmitifiquem e existam.
Texto de Mirani Barros

Pesquisadora do corpo gordo, Mestre em Saúde Coletiva, Professora na área de Saúde Coletiva UFRJ-Macaé.
e-mail: miranibarros@gmailcom
Ig: @miranibarros