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A escrita como Expansão e Possibilidade por Daniele Lemos

As palavras nos constituem. As palavras nos dão acesso ao mundo dos significados, nos permitem organizar, ordenar, classificar, tornar inteligível e racionalmente existente o já existido. Nos permitem dar sentido, nos permitem sentir. Paradoxal, no entanto, é perceber que ao mesmo tempo que as palavras me permitem dar sentido e sentir, elasas palavras- não são suficientes ao sentir. O sentir extrapola, incontrolável, indisciplinado e caótico. Elas- as palavras- me permitem sentir ao mesmo tempo que limitam o meu sentir. Elas- as palavras- dizem o que sou, quem sou, como sou. Elas- as palavras- dizem o que não sou, quem não sou, como não sou. Cartesianamente excludente. Impositivamente determinante. Identitariamente constituinte. Sou elas – as palavras- mas sou muito mais do que elas- as palavras. Usam – “mulher careca” – pra me descrever, pra me fazer existir. Passei a existir na ordem do que não deveria existir. Na ordem do patológico, na ordem do desvio, na ordem do anormal. As palavras que usam pra me fazer existir compõem uma amálgama de discursos que explicam o inexplicável. Ela- a mulher careca- não deveria ser assim. Se é mulher não deveria ser careca, se o é, não deveria ser. Mesmo sendo, mesmo existindo, as palavras usadas reafirmam que não deveria. Voltemos, as palavras que me fazem existir são as mesmas que dizem que eu não deveria. Ao menos não dessa forma. Vai lá- as palavras dizem. Não tem cura? Vai se curar! Quais são os tratamentos disponíveis? dizem também- Não é melhor se maquiar? Desenhar a sobrancelha? Passar um batom? Colocar um brincão? Dizem ainda: E se você usar perucas? E se aprender formas distintas de usar turbantes? E se usar um chapéu? Um gorro? – Você existe, mas não deveria! Ao menos, não assim, não desse jeito! Fui me compondo por essas palavras, fui existindo através delas. Mas hoje faço diferente! Brinco com elas- as palavras! Estico-as, confundo-as, desgasto-as. Crio novas- as palavras! Alargo o léxico, rompo a morfologia, reinvento a coerência, construo novos sentidos. Rasgo palavras, costuro significados. Então a resposta é: Não! Não vai ter tratamento, peruca, chapéu ou brincão. Vai ter confusão. De palavras e de sentidos. Se as palavras que me fizeram existir até aqui não me comportam, vou criar novas que me expandam!

A Escrita Como Experimento e Liberdade por Thais Borducchi

O caminho de reconexão com a escrita está profundamente ligado ao processo de me reencontrar comigo mesma. Houve um tempo em que a escrita parecia distante, as palavras não fluíam, e qualquer tentativa de expressão se desvanecia antes de ganhar forma. Cada tentativa frustrada carregava os bloqueios que me foram impostos desde a infância. No entanto, ao me reconectar com minha própria história, percebo que é única, imensa e que merece ser contada. A escrita, então, deixa de ser um fardo e se transforma em um encontro comigo mesma, com minhas vivências e com as de outras pessoas. Ela se torna uma prática afectiva, potente e revolucionária.

Cresci acreditando que a escrita era um privilégio de poucos. A escola me ensinou a temer o erro, a evitar a página em branco com medo de não estar “correta”. A escrita, que deveria ser um meio de liberação, tornou-se um reflexo das inseguranças que carregava, especialmente por causa dos meus muitos erros gramaticais, que sempre me deixaram com medo de expor minhas ideias.

A relação entre a escrita e o meu corpo sempre foi marcada por um conflito interno. Ser uma mulher gorda em um mundo que frequentemente marginaliza vozes como a minha fez com que eu me sentisse insegura em relação à minha expressão. Durante meus anos de faculdade e com meu Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvi uma pesquisa sobre o corpo gordo feminino, e essa experiência foi transformadora. Ao explorar as narrativas e as vivências de outras mulheres gordas, percebi que minha voz e minha história também eram válidas e possíveis. Através dessas histórias, fui capaz de refletir que cada corpo carrega uma história única, e que as experiências individuais são narrativas poderosas.

No curso “Escritas Afectivas”, compreendi que meu lugar de fala é, antes de tudo, um lugar de potência. Aprender a valorizar essa perspectiva foi fundamental para que eu me sentisse à vontade para escrever. Os erros gramaticais que tanto me intimidaram passaram a ser vistos como parte do processo, e não como barreiras intransponíveis. Passo a ver a escrita como um espaço de experimentação.

Ao longo da minha jornada, percebi que as dores que carrego não são apenas marcas físicas, mas histórias profundas que habitam meu corpo. Ser uma mulher gorda em um mundo que muitas vezes marginaliza a diversidade de corpos traz um peso emocional que se manifesta em traumas e inseguranças. Junto com outras mulheres, revisitamos e compartilhamos nossas dores.

Vivo em um corpo constantemente julgado e analisado pela sociedade, e muitas das dores que carrego vêm desse lugar de exclusão e invisibilidade. Minhas cicatrizes não são apenas físicas, mas emocionais, resultado de anos ouvindo que meu corpo era errado ou não merecia ocupar espaços. Durante o curso, fui guiada a revisitar essas feridas, a confrontar não só a dor que veio do olhar alheio, mas também os medos e inseguranças internalizados.

Escrever sobre essas dores foi como passar o dedo em cicatrizes que o tempo suavizou, mas que ainda carregam lembranças intensas. Descobri que há uma cura em dar nome a esses sentimentos, em transformar em palavras a dor de não ser aceita e a luta por existir plenamente em um mundo que tantas vezes nega essa possibilidade. Minha escrita vem se tornando um espaço seguro, onde essas cicatrizes podem existir sem vergonha, onde posso ressignificar a narrativa que por tanto tempo me foi imposta.

Cada frase que escrevo é uma forma de costurar as feridas deixadas por anos de gordofobia, mostrando que essas cicatrizes fazem parte da minha história, mas não definem minha capacidade de ser, de amar e de criar.

Hoje, ao olhar para minhas cicatrizes, vejo não apenas as marcas de dor, mas também a força que carrego ao transformar essas experiências em palavras. A escrita me da o poder de comunicar minha vivência como mulher gorda de forma honesta e vulnerável, sem medo de expor o que antes parecia inominável. Cada palavra é um ato de resistência, um testemunho da minha jornada e da minha superação.

MULHER GORDA: Um corpo proibido!

Por Malu Jimenez

Na minha infância, como criança gorda, lembro de muitos episódios em que outras crianças riam de mim, na aula de educação física por exemplo, segundo aquelas outras crianças, não conseguia correr pelo tamanho do meu corpo. Eu me esforçava tanto para nunca perder e mostrar que era gorda, mas conseguia correr, que sempre terminava exausta e nem sempre conseguia ganhar, lógico!

Mas, foi num dia em particular que a quadra estava cheia de gente, era gincana na escola, que eu fui tão ansiosa para ganhar entre 10 alunos, que cai de cara no asfalto da quadra e ralei meus joelhos, mãos e doeu muito, tanto fisicamente como emocionalmente, porque ouvia os risos e comentários sobre minha incapacidade por ser gorda.

Nenhum adulto que estava lá me protegeu, ou reprendeu as outras crianças que riam de minha dor.


Na adolescência, ganhei uma saia curta branca de pregas, era o uniforme para fazer atividade física da escola pública que frequentava, me olhei no espelho e me senti linda naquela roupa. Estava dançando com outras amigas usando a saia, quando um grupo de meninas começaram a rir e apontar para mim, e ouvi de longe: – a gorda ridícula quer dançar; que nojento! Doeu, e mais uma vez a violência, ódio, nojo ao meu corpo aconteceu, foi assim que fui crescendo e entendendo que meu corpo representava na sociedade: fracasso, risos, nojo!


Quando adulta, fui ridicularizada muitas vezes por ser gorda, lutava para estar sempre magra, já que ser gorda nesse mundo dói demais, passei mal, desmaiei, fiquei sem comer, tomei remédio, não importava os meios, mas o fim era estar “magra” e para isso valia tudo e qualquer coisa. Cometi diversas atrocidades contra mim mesma, nessa construção de um corpo almejado que não era o meu e que para tê-lo era preciso me machucar.


Penso agora quanto sofrimento, era dor para todos os lados, por estar gorda e querer ser magra, sempre estava me automutilando, machucando, desprezando. A sociedade não me dava outra saída, e eu no fundo queria simplesmente viver com o corpo que eu tinha: gorda. Mas a saúde, a educação, a família e amigos me diziam: Emagreça por sua saúde.


Tanta dor me levou num momento da vida adulta a repensar tudo isso, por quanto tempo continuaria seguindo esse padrão de sofrimento, perseguindo essa dor para estar e ser aceita numa sociedade que nunca estava satisfeita com meu corpo, quem eu era e o que buscava: Viver, simplesmente SER.

Aos poucos comecei a estudar a fundo a questão do corpo gordo, entender os mecanismos que a gordofobia atua, identificar que ela é a mola propulsora normalizada. Mola propulsora de tanto sofrimento, e ainda me culpar por tudo isso, como o mecanismo heteronormativacolonial consegue sempre culpar as vítimas com maestria, porque a própria vítima também se culpabiliza.


Esse caminho tem sido longo e nada linear, depois de uma tese defendida, ativismo, leituras, aulas, Lives, feminismo e muito trabalho de mudanças de paradigmas sobre o corpo gordo, mas principalmente sobre meu corpo gordo maior, em que entendi que toda essas dores, feridas que tenho marcadas em meu corpo, vem das atitudes normalizadas das pessoas em invisibilizar quem somos, o que fazemos, definitivamente: MULHER GORDA
não pode existir.
Pensem comigo: quantas histórias de mulheres gordas vocês conhecem na arte? Quantas mulheres gordas que aparece e mostram o que fazem são aceitas, valorizadas, compreendidas? Aposto que são bem poucas e quando existem, são desvalorizadas ou anuladas, existimos e o tempo todo nos é apagado o direito de existência.


Nas minhas redes por exemplo, mesmo agora que venho a anos desconstruindo o que significa ser uma mulher gorda, sou relembrada a todos os dias que minha história, o que tenho para dizer, falar, construir, ou mostrar deve ser apagado, bloqueado. Meu corpo não pode aparecer como outros corpos que vemos na internet, é um corpo proibido.


Sou colocada em um lugar social de exclusão, de inferioridade, como se não merecesse contar minha história, meu ponto de vista a todo momento, e você que ainda acha em pleno século 21 que as pessoas gordas estão doentes, ajuda a fomentar esse ódio ao meu corpo, aos corpos gordos.


A gordofobia opera disfarçada em saúde e cuidado, mas na realidade é ódio que as pessoas tem que esses corpos existam e resistam: nossas redes são denunciadas, bloqueadas sequencialmente, como se por sermos uma mulher gorda não tivéssemos o direito de nos mostrar, estudar, ser doutora, ensinar, aprender, dançar, cantar, pesquisar, escrever ou simplesmente viver, existir… Estamos falando de um sistema de apagamento de nossas vidas, um dia atrás do outro, de um extermínio sistêmico de corporalidades gordas em muitas frentes, na maternidade, na academia, no ativismo, na literatura, na dança, na saúde, na atividade física, na internet…

Na VIDA!


O funcionamento dessa lógica gordofóbica é, e está em todo lugar, dentro da sua cabeça,
MULHER GORDA: APAGA TUDO!


Para Consultar:
– Erving Goffman. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
– Rafael Mattos. Sobrevivendo ao estigma da gordura.
– Michel Poulain. Sociologia da obesidade.
texto do BLOG: Gordofobia uma questão de perda de direitos. Maria Luisa Jimenez Jimenez -https://www.todasfridas.com.br/2018/03/11/gordofobiauma-questao-de-perdaa-de-direitos/
Tese que virou livro, lute como uma gorda: gordofobia, resist~encias e ativismos.
Tese de doutorado lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos.
(https://web.archive.org/web/20210614205051/https://lutecomoumagorda.home.blog/tese-de-doutorado-lute-como-uma-gorda-gordofobiasresistencias-e-ativismos/)

Texto publicado no BLOG Todas Fridas, 2021.

Por que usamos calcinha?

Por Malu Jimenez

Essa é uma pergunta que faço desde criança. Nunca gostei de usar e continuo odiando. Fui educada pela minha mãe e irmã mais velha que tinha que usar, porque me protegeria de \”bichos\” e/ou \”sujeiras\” rsrsrrs hoje quando lembro, dou risada….

Sempre me incomodou, machucou, abafou, enfim… Nunca entendi muito o sentido de ter que usar a tal da calcinha…. Para nós mulheres gordas, além de ser difícil achar calcinhas confortáveis, ainda temos a dificuldade de achar do nosso tamanho…

É como se a calcinha fosse um acessório muito mais para a sensualidade, para sexualidade no universo masculino, do que para a mulher que é quem usa. Além de que, tudo que é sensual, \”feminino\” sexy não é para um corpo gordo grande, muito pelo contrário, esse tipo de consumo nos é negado porque é visto socialmente como um corpo morto, doente que provavelmente não tem vida sexual….

Com a pandemia estou em casa desde março com raras saídas, sempre fiquei o máximo de tempo que conseguia em casa sem,  e agora na pandemia,  nem sei mais o que é usar calcinha, e posso garantir que não me faz a mínima falta….

Conversando com algumas seguidoras, amigas se usavam calcinha e se sentiam confortáveis, me surpreendeu o numero de mulheres que vem abolindo a calcinha de suas vidas, magras, gordas, não gostam e já não usam mais.

Pesquisando sobre a temática, é certo que essa peça de roupa tem um valor muito maior que uso prático, confortável e de proteção, foi apenas no século XX que a lingerie passa a ser uma peça obrigatória no nosso vestuário, ao longo do tempo a “calcinha” que já foi bermuda deixa de ser “funcional” para se tornar uma arma poderosa da sedução masculina.

Ou seja, a tal da calcinha como percebemos, usamos e consumimos hoje está muito mais ligada a sedução heteronormativa do que uma peça funcional, confortável de proteção como muitas de nós ainda pensamos. Mais uma ferramenta que nos obrigam a usar para satisfazer o desejo masculino.

O mercado entorno a essa peça é gigantesco, basta você pensar nas cores, tecidos, modelos, lojas especializadas… Em algum momento de nossas vidas compramos calcinhas “belas” para agradar alguém     ou não? Nosso corpo feminino sempre agradando aos outros e nosso conforto?

Pode parecer bobeira, coisa de “feminista”, alguns dirão que é mimimi, mas nós mulheres estamos nos incomodando cada vez mais com o que usamos, com o que nos aperta, machuca, abafa, dói. E a calcinha é em definitivo uma peça complicada de agradar a todos os corpes….

Inclusive pesquisando por ai, existem marcas de lingerie feministas, como no caso dessa matéria que encontrei, link abaixo, “O feminismo e a volta das calcinhas extra grandes, ultra simples e mega confortáveis” de 2018, no qual apresenta algumas marcas e ideias de produção de calcinhas confortáveis, mas ainda não de abolir essa peça. Então a pergunta continua: Por que devemos usar calcinha?

Outro fator interessante é pensar porque se chama “calcinha” no diminutivo hummm? Frágil? Pequenino? Deve estar preservado? Tampado?

Outro jogo de discurso de dominação que diminui nossa vulva como algo que deve estar dentro da ideia de cuidado e proteção, valoroso, mas que deve estar guardado, vigiado e que é menor e bem mais frágil do que o pênis por exemplo, já imaginou chamar a peça intima do homem de cuequinha? Já ouvi cuecão, mas cuequinha jamassss não é masculino.

O diminutivo está quase sempre relacionado ao que é menor, mais frágil, pequeno, enfim… No universo masculino ao contrário, é sempre o aumentativo ão da palavra ligada a força, poder: Ricardão, machão, gostosão, cuecão e assim vai….

Talvez esteja na hora de revisar esse uso como algo apenas sensual e não funcional para quem usa, nós mulheres.

Eu uso cada vez menos e não sei se agora depois da pandemia tem volta, porque é outra realidade, inclusive para a saúde da vulva, muitas mulheres como eu relataram que não tem mais corrimento, candidíase…, mas a medicina não dizia ao contrário, algum tempo atrás, em nome da saúde?

Lembro que um médico que fui na adolescência me disse para usar de algodão se me incomodava e desaprovou o não uso da calcinha, porque disse que o uso era higiênico, apenas a pouco tempo que tenho visto o conselho médico para dormir sem, ou usar o menos possível.

Esse é um ótimo exemplo de como nós mulheres, as dissidentes, não somos escutadas dentro dos consultórios médicos, porque penso que se reclamei de um incomodo porque não prestar atenção a ele?

         O que posso dizer a vocês é que parar de usar calcinha, algo que sempre quis, me fez experienciar o quanto essa peça é uma imposição cultural masculina de controle e que não usar é libertador, vale a pena experimentar!

Como vocês percebem o uso da calcinha na vida de vocês?

Consultar:

Rosemary Hawthorne. Por Baixo do Pano: a História da Calcinha. São Paulo: Matrix, 2009.

Fabiana Correis. O feminismo e a volta das calcinhas extra grandes, ultra simples e mega confortáveis, 2018. Disponível em: https://thesummerhunter.com/gioconda-clothing-lingerie-feminista/

Sylvia Pessoa Almeida.  TCC:” Meu corpo, minhas regras\”: uma análise do discurso feminista na internet. UFRJ. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/250

Texto publicado BLOG Todas Fridas, 2021.

A escrita feminista como potência!

Por Malu Jimenez

Durante muitos séculos, na verdade em toda a história da humanidade, as mulheres nunca foram ouvidas, nossas histórias sempre são contadas por homens brancos, europeus, dentro do sistema cisheteronormativo colonial de conquista do poder do saber. Quem conta a história é que detém a verdade, e isso acontece até hoje.

A história das bruxas, por exemplo, contada por homens, enalteceu os senhores que nos matavam queimadas em fogueiras em praças públicas e depreciavam o feminino como diabólico e perigoso, ou seja, quem estavam sendo assassinadas, torturadas por serem feministas. Já que, morrer queimada pelo sistema ao meu ver são muito mais invisibilizadas do que perigosas.

Conto essa história como ilustração, do que esse sistema que sempre é detentor da história, e não só conta, escreve, mas essa interpretação é a vigente, propagada, aliciada e apoiada por instituições de poder, como a educação nas escolas e universidades, a saúde nas clínicas e hospitais, bem como as grandes mídias, nas tvs e jornais do nosso mundo contemporâneo.

A propagação das histórias do “povo”, das “mulheres”, dos subalternos, sempre é contada por e para perspectivas violentas, que rebaixam corporeidades. Nós do outro lado reivindicamos sermos ouvidas, lutamos por colocar nossa história no mundo. Aliás para mim, essa luta é tema central no feminismo, seja ele qual for, de onde for.

Nossas histórias importam!

Pois, é isso que as feministas fazem desde de sempre, denunciam esse projeto cisheteronormativo de conhecimento injusto e segregador, que conta a história e faz ciência, produz conhecimento apoiando o lado opressor, injusto e masculino que compõem nosso mundo.

E, é por essa injustiça histórica com os subalternizados, que precisamos do poder das escritas femininas e de como seus saberes são construídos, para que possamos ter força e esperança para lutar contra a hegemonia que tanto nos invisibilizou e continua tentando nos calar.

É preciso perspectivas subjetivas femininas em nossas escritas, muito mais versões de mundo como sujeitas ativas e com políticas de escritas potentes reivindicando autoridade na construção do conhecimento.

É essencial fomentar, apoiar, consumir e propagar histórias de mulheres, como nomeia Dona Haraway, mulheres que desenvolvam, construam tecnologias da escrita como “aparato da produção literária,” para que a história não continue contada apenas pelo opressor.

Consultar

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. ESTUDOS FEMINISTAS, 2020. Pgs. 229-236.

EVARISTO, C. Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura

Brasileira. PALMARES – Cultura afro-brasileira, Brasília, p. 52/56.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7–41, 2009. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773. Acesso em: 4 fev. 2021.

FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. In: MOTTA, Manoel Barros (org.). Ética, sexualidade, política. 2ªed, Rio de Janeiro: Universitária, 2010b, pp. 288-93.

RIBEIRO, Djalma. O que é lugar de fala. Belo Horizonte – MG: Letramento, 2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina G. Almeida e Marcos P. Feitosandré Feitosa. Belo Horizonte – MG: UFMG, 2014.

Esse texto foi publicado no BLOG TODAS FRIDAS em 2021.

A quarentena e as apropriações de protagonismo na internet

Por Malu Jimenez

Em época de quarentena, muitas pessoas, principalmente as que não precisam sair de casa para trabalhar. Ou seja, classes mais favorecidas estão ocupando o mundo virtual com mais frequência, tanto na produção quanto no consumo de conteúdo virtual. São muitas Lives, cursos online, games, bate papos, plataformas congestionadas, horário nobre e tudo isso que envolve a cibercultura.

Esse cenário mostra que o presencial está sendo substituído aos poucos pelo virtual, e esse novo comportamento também traz novas análises e maneiras de entender e estar no mundo.

Como sou uma pessoa conectada desde antes da pandemia, venho notando essa diferença todos os dias e observando o que as pessoas estão produzindo e consumindo, faz parte do meu trabalho e do pesquiso: Consumo e Corpo Gordo.

Entendo que fica difícil diferenciar que o seguimento de ativismo, dos perfis, das redes, blogs, influencers como consumo, porque não é uma compra direta como num supermercado ou pagamento de uma conta pela internet, mas é consumo também.

Tem um livro bem interessante da Izabela Domingues e Ana Paula de Miranda, “Consumo de Ativismo”, que explica que o consumidor nas redes vem se deparando com tomar posicionamentos políticos. Já que,

Quando falamos de consumo não estamos nos referindo apenas a compras e, por conseguinte, ao consumo de mercadorias ou bens materiais, pois consumimos modos de ser, consumimos moda, telenovelas, consumimos Instagram, entre outros bens simbólicos.

O que tenho visto nas redes é muita gente produzindo conteúdo desesperadamente, como forma de ganhar uns likes e tentar sobreviver desse protagonismo. Observe que temos influencers de tudo que você imaginar na rede, e sinceramente não vejo problema nenhum nisso, acho até bem legal, através de alguns clics eu conseguir consumir conteúdo sobre tudo que eu precise, desde plantar batata até cozinhar um prato francês, isso é fantástico.

O problema, penso eu, começa quando você começa a ver na sua timeline várias vezes ao dia, apropriações de protagonismos na rede de maneira descarada e com milhões de seguidores apoiando essa falta de consciência de lugar de fala na sociedade.

São muitos, e são ferozes que diretamente e indiretamente acabam invisibilizando ou tirando a importância de algumas causas, protagonismos necessárias e importantes no contexto atual de minorias e lutas sociais. Se você não está entendo nada sobre isso, continua aqui que eu vou te explicar.

Voltando as pesquisadoras do livro “Ativismo de Consumo”, elas explicam que, “O ativismo pressupõe o consumo de símbolos capazes de propagar ideias e conceitos, os quais, por sua vez, acabam sendo reprocessados pelo sistema a favor de sua própria reprodução.”

Nessas três semanas em casa, consumindo as redes vi de tudo, mulheres brancas debatendo temas sobre racismo e protagonizando feminismo negro, adolescentes de bairros nobres protagonizando e discutindo o rap que se faz na periferia, mulheres magras discutindo e protagonizando a luta e pautas do ativismo gorde, homens que se autodenominam de esquerda discutindo feminismo e protagonizando sobre ele, enfim apropriações de discussões e protagonismos que na maioria das vezes quando apresentam suas pautas não recebem tantos likes quanto a galera padrão e cheia de recursos, câmeras apropriadas, etc.

Isso também acontece com as fotografias e imagens postadas nesses canais, mulheres brancas e gordas menores ou nem gordas, postam fotos de biquini rebolando e todo mundo acha lindo, enquanto se uma gorda maior e negra postar a mesma ideia, rapidamente alguém denuncia ou o próprio instagram bloqueia como impróprio ou que fere as diretrizes. Isso é sério!

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A Milly Costa do @elapretaafronta que já teve vários perfis bloqueados, fotos censuradas, entre outras medidas punitivas nas redes lançou ontem em seu canal um vídeo falando sobre isso. Quem tem permissão para aparecer?

A gente precisa refletir sobre isso, qual é meu lugar de privilégio? Qual é meu lugar de fala? Qual é meu lugar nas redes? Porque tirar o protagonismo de ativistas que falam de suas dores que estão gravadas em seus corpos e que nunca tiveram espaço para isso é no mínimo cruel e não merecem apoio, cada um que procure seu lugar social de fala e trabalhe encima disso.

É necessário entender isso, principalmente se você é contra o fascismo, o racismo, a gordofobia é urgente esse posicionamento. Pensem comigo, se a youtuber já tem milhões de seguidores porque ela fala sobre temas relacionados a sua existência, para quê pegar e se aproveitar de temas e protagonismos que não lhe pertencem? A troco de quê?

Veja! Não estou dizendo que as pessoas não possam falar de racismo e gordofobia, pelo contrário: podem e devem, contudo sabendo e entendendo que não é seu protagonismo e que se você como influenciador e que tem milhões de seguidores fala de um tema desses, sem ao menos chamar um protagonista que talvez não tenha a visibilidade que você tem para falar de sua luta e ser conhecido pelos seus seguidores? Se você se apropria da discussão e não cita, viabiliza e apoia ativistas da causa, sinto muito, mas você não entendeu nada!

As consumidoras dessas pessoas e conteúdo, principalmente as seguidoras precisamos começar a serem mais críticas, ou pelo menos entender qual é seu lugar de fala e o lugar de fala desse influenciador. Isso é sério porque se pessoas brancas começam a protagonizar a luta contra o racismo, ou pessoas magras começam a protagonizar a luta contra gordofobia, as pessoas que vivenciam essa opressão, esse estigma são de novo invisibilizadas, apagadas e excluídas socialmente.

Já pensou sobre isso? Além de que entender, saber e perceber seu lugar de fala na sociedade é muito importante, sabia? Perceber o nosso lugar de fala vai muito além de nossos conteúdos e ativismos, muito mesmo.

Entender nosso lugar de fala é uma postura perante o mundo, as pessoas, isso é muito importante pra você e para sociedade. Essa construção é individual, e a gente não pode ficar esperando que as outras pessoas nos digam o que é tal coisa, ou porque é assim ou assado, sabe? A gente tem que construir nosso ativismo, nossa postura entendendo nosso lugar de fala no mundo.

Esse entendimento é uma construção individual, de seu interesse, posicionamento no mundo e da empatia com outras pessoas que sofrem diretamente aquilo que você conhece, mas não é o principal afetado. Por isso é importante que cada uma de nós entenda nosso lugar social de fala no mundo e não saia atropelando o lugar de fala de outras pessoas.

Isso é postura no mundo. Respeito as pessoas e a si mesma, na hora de reivindicar onde é seu lugar de fala e entender o do outro. Compreender sua localização social é fundamental para conhecer seus privilégios, respeitar as diferenças e não atropelar, invisibilizar o protagonismo de ninguém! Essa consciência também vale para gente não dar biscoito pra quem atropela ou se aproveita de outros lugares de fala que não são seus por likes, vaidade ou fama.

Pensar sobre o ativismo gordo que faço parte e tenho protagonismo, porque sou uma mulher gorda maior é entender outras posturas e dores que complementam a gordofobia, posicionando-se dentro de um lugar de fala e apoiando outros lugares e exclusões.

Como a Bell Hooks nos alerta explicando que:

Temos de trabalhar ativamente para chamar atenção para a importância de criar uma teoria capaz de promover movimentos feministas renovados, destacando especialmente aquelas teorias que procuram intensificar a oposição do feminismo ao sexismo e à opressão sexista. Fazendo isso, nós necessariamente celebramos e valorizamos teorias que podem ser, e são, partilhadas não só na forma escrita, mas também na forma oral.

Dentro de nossos encontros, conversas e depoimentos, estamos buscando maneiras novas de nos libertarmos de nossas opressões, buscando uma transformação do que somos, entendemos e também de como vemos e tratamos as outras mulheres gordas que não são como eu, mas sofrem mais e sofrem menos e precisam de ajuda.

Existe um paralelo à questão de gordas maiores e menores nessa conversa de protagonismos, já que, se estamos todas lutando contra a gordofobia, toda luta é válida e soma, e se aprende a defender outras opressões quando não as sofremos. Mas quando se pesa mais de 120 quilos, ou se usa uma numeração acima dos 58, é evidente que a gordofobia, por exemplo vai ser maior e mais cruel.

Isso é fácil de entender se você tiver empatia e pensar na acessibilidade desses corpos, já que se eu que uso numeração 58 e peso 130 quilos entro num hospital não haverá maca, cadeira de roda, aparelhos de exames que eu caiba confortavelmente para usufruir de meu direito de ter saúde na constituição. Enquanto uma mulher gorda menos que use a numeração 50 consiga ter toda essa assistência sem mais problemas. Ela sofre gordofobia? Claro que sim, mas não sofre como as gordas maiores.

Imagine então uma mulher que nem gorda é, apenas se ache porque não se encaixa no padrão, mas continua tendo todos os privilégios de uma mulher magra: roupas, cadeiras, transporte, macas e aparelhos de exames, etc.

E que depois dessa diferença real de vida, de viver a opressão mais forte, a mulher que se considera gorda mas não é use a pauta da gordofobia em seu canal, as pessoas apoiem isso e quando eu ou outra mulher gorda maior aparecemos cause pavor, pânico aos seguidores, porque na formação social do que é ser gordo para eles é a youtuber gorda, eu sou uma aberração. Isso é muito sério!

Assim, você que apoia essas lutas contra as opressões mostre isso no seu conteúdo de forma prática porque entender o que é empatia é necessário, mas praticar é mais ainda. A Joice Berth citando a Djamila Ribeiro, explica que,

 […] empatia não é um sentimento que pode te acometer um dia, outro não, mas sim uma construção intelectual que demanda esforço, disponibilidade para aprender e ouvir. Tão mais empática a pessoa será quanto mais ela conhecer a realidade que denuncia uma opressão.

Portanto, todas as pessoas possuem um lugar de fala, é uma postura ética, porque saber o lugar de onde falamos é “fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo.” (Djamila Ribeiro). E, ainda, é importante que entendamos de onde falamos, em qual localização social estamos inseridos, Joice Berth de novo citando a Djamila Ribeiro que escreveu sobre isso.

[…] o fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.

Posto isso, acredito ser importante que cada mulher gorda, entenda seus privilégios, lugares de fala e hierarquias, respeitando outras opressões que estão juntas da questão da gordura, sem separá-las dentro da construção da subjetividade de cada uma. Mas, também, entendo, e por experiência própria, que esse posicionamento dentro do ativismo vem com o tempo, porque precisa existir uma reconstrução dentro de um processo político, que descoloniza os afetos, para, então, começarmos a pensar criticamente, a partir de nosso posicionamento no mundo,  em relação às outras mulheres que querem fazer parte da mesma luta que eu: a antigordofobia.

E como acrescenta bell hooks, é importante pensar nessa discussão:

Se realmente queremos criar uma atmosfera cultural em que os preconceitos possam ser questionados e modificados, todos os atos de cruzar fronteiras devem ser vistos como válidos e legítimos. Isso não significa que não sejam sujeitos a críticas ou questionamentos críticos ou que não haja muitas ocasiões em que a entrada dos poderosos nos territórios dos impotentes serve para perpetuar as estruturas existentes.

Me parece que é importante que todas façam parte dessa construção e delimitações de espaços e localizações de fala, respeitando a opressão sofrida pela outra e buscando compreender qual o seu lugar no ativismo, apoiando. É fundamental a postura das que já conseguiram entender seus privilégios: tenham paciência e didática para explicar às que estão chegando e às que ainda estão por vir.  O nosso ativismo salva vidas.

Mas também é importante que reflitamos sobre essa apropriação, que sinalizamos, e que as pessoas comecem a fazer conteúdo à partir da conscientização de seu lugar de fala, de seus privilégios e do que isso causa nas outras pessoas que discutem o mesmo tema, ou seja, deixemos a protagonização das discussões e ativismos para as pessoas que vivenciam o estigma, que são excluídas por isso.

Para Consultar:

bell hooks. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

Djamila Ribeiro. Lugar de Fala. Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

Izabela Domingues; Ana Paula de Miranda. Consumo de Ativismo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2018.

Joice Berth. O que é empoderamento? Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

Milly Costa. Quem tem permissão? Disponível em: https://www.instagram.com/tv/B-auEMBnT8A/?utm_source=ig_web_copy_link

Texto publicado no BLOG TODAS FRIDAS em 2020.

Lute como uma gorda é um blog criado pela Profa. Dra. Malu Jimenez, ativista e pesquisadora do corpo gordo. Aqui reunimos e potencializamos conteúdos sobre este tema, a fim de construir, conectar e formar pessoas que se interessem pela causa.

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Este livro é resultado de sua pesquisa que teve origem em sua tese de doutorado, a qual propõe análises teóricas para investigar a estigmatização institucionalizada sob a qual os corpos gordos são colocados. Lute como uma gorda está disponível para venda e comprando por aqui você recebe uma dedicatória especial da autora