Por Malu Jimenez
Em época de quarentena, muitas pessoas, principalmente as que não precisam sair de casa para trabalhar. Ou seja, classes mais favorecidas estão ocupando o mundo virtual com mais frequência, tanto na produção quanto no consumo de conteúdo virtual. São muitas Lives, cursos online, games, bate papos, plataformas congestionadas, horário nobre e tudo isso que envolve a cibercultura.
Esse cenário mostra que o presencial está sendo substituído aos poucos pelo virtual, e esse novo comportamento também traz novas análises e maneiras de entender e estar no mundo.
Como sou uma pessoa conectada desde antes da pandemia, venho notando essa diferença todos os dias e observando o que as pessoas estão produzindo e consumindo, faz parte do meu trabalho e do pesquiso: Consumo e Corpo Gordo.
Entendo que fica difícil diferenciar que o seguimento de ativismo, dos perfis, das redes, blogs, influencers como consumo, porque não é uma compra direta como num supermercado ou pagamento de uma conta pela internet, mas é consumo também.
Tem um livro bem interessante da Izabela Domingues e Ana Paula de Miranda, “Consumo de Ativismo”, que explica que o consumidor nas redes vem se deparando com tomar posicionamentos políticos. Já que,
Quando falamos de consumo não estamos nos referindo apenas a compras e, por conseguinte, ao consumo de mercadorias ou bens materiais, pois consumimos modos de ser, consumimos moda, telenovelas, consumimos Instagram, entre outros bens simbólicos.
O que tenho visto nas redes é muita gente produzindo conteúdo desesperadamente, como forma de ganhar uns likes e tentar sobreviver desse protagonismo. Observe que temos influencers de tudo que você imaginar na rede, e sinceramente não vejo problema nenhum nisso, acho até bem legal, através de alguns clics eu conseguir consumir conteúdo sobre tudo que eu precise, desde plantar batata até cozinhar um prato francês, isso é fantástico.
O problema, penso eu, começa quando você começa a ver na sua timeline várias vezes ao dia, apropriações de protagonismos na rede de maneira descarada e com milhões de seguidores apoiando essa falta de consciência de lugar de fala na sociedade.
São muitos, e são ferozes que diretamente e indiretamente acabam invisibilizando ou tirando a importância de algumas causas, protagonismos necessárias e importantes no contexto atual de minorias e lutas sociais. Se você não está entendo nada sobre isso, continua aqui que eu vou te explicar.
Voltando as pesquisadoras do livro “Ativismo de Consumo”, elas explicam que, “O ativismo pressupõe o consumo de símbolos capazes de propagar ideias e conceitos, os quais, por sua vez, acabam sendo reprocessados pelo sistema a favor de sua própria reprodução.”
Nessas três semanas em casa, consumindo as redes vi de tudo, mulheres brancas debatendo temas sobre racismo e protagonizando feminismo negro, adolescentes de bairros nobres protagonizando e discutindo o rap que se faz na periferia, mulheres magras discutindo e protagonizando a luta e pautas do ativismo gorde, homens que se autodenominam de esquerda discutindo feminismo e protagonizando sobre ele, enfim apropriações de discussões e protagonismos que na maioria das vezes quando apresentam suas pautas não recebem tantos likes quanto a galera padrão e cheia de recursos, câmeras apropriadas, etc.
Isso também acontece com as fotografias e imagens postadas nesses canais, mulheres brancas e gordas menores ou nem gordas, postam fotos de biquini rebolando e todo mundo acha lindo, enquanto se uma gorda maior e negra postar a mesma ideia, rapidamente alguém denuncia ou o próprio instagram bloqueia como impróprio ou que fere as diretrizes. Isso é sério!

A Milly Costa do @elapretaafronta que já teve vários perfis bloqueados, fotos censuradas, entre outras medidas punitivas nas redes lançou ontem em seu canal um vídeo falando sobre isso. Quem tem permissão para aparecer?
A gente precisa refletir sobre isso, qual é meu lugar de privilégio? Qual é meu lugar de fala? Qual é meu lugar nas redes? Porque tirar o protagonismo de ativistas que falam de suas dores que estão gravadas em seus corpos e que nunca tiveram espaço para isso é no mínimo cruel e não merecem apoio, cada um que procure seu lugar social de fala e trabalhe encima disso.
É necessário entender isso, principalmente se você é contra o fascismo, o racismo, a gordofobia é urgente esse posicionamento. Pensem comigo, se a youtuber já tem milhões de seguidores porque ela fala sobre temas relacionados a sua existência, para quê pegar e se aproveitar de temas e protagonismos que não lhe pertencem? A troco de quê?
Veja! Não estou dizendo que as pessoas não possam falar de racismo e gordofobia, pelo contrário: podem e devem, contudo sabendo e entendendo que não é seu protagonismo e que se você como influenciador e que tem milhões de seguidores fala de um tema desses, sem ao menos chamar um protagonista que talvez não tenha a visibilidade que você tem para falar de sua luta e ser conhecido pelos seus seguidores? Se você se apropria da discussão e não cita, viabiliza e apoia ativistas da causa, sinto muito, mas você não entendeu nada!
As consumidoras dessas pessoas e conteúdo, principalmente as seguidoras precisamos começar a serem mais críticas, ou pelo menos entender qual é seu lugar de fala e o lugar de fala desse influenciador. Isso é sério porque se pessoas brancas começam a protagonizar a luta contra o racismo, ou pessoas magras começam a protagonizar a luta contra gordofobia, as pessoas que vivenciam essa opressão, esse estigma são de novo invisibilizadas, apagadas e excluídas socialmente.
Já pensou sobre isso? Além de que entender, saber e perceber seu lugar de fala na sociedade é muito importante, sabia? Perceber o nosso lugar de fala vai muito além de nossos conteúdos e ativismos, muito mesmo.
Entender nosso lugar de fala é uma postura perante o mundo, as pessoas, isso é muito importante pra você e para sociedade. Essa construção é individual, e a gente não pode ficar esperando que as outras pessoas nos digam o que é tal coisa, ou porque é assim ou assado, sabe? A gente tem que construir nosso ativismo, nossa postura entendendo nosso lugar de fala no mundo.
Esse entendimento é uma construção individual, de seu interesse, posicionamento no mundo e da empatia com outras pessoas que sofrem diretamente aquilo que você conhece, mas não é o principal afetado. Por isso é importante que cada uma de nós entenda nosso lugar social de fala no mundo e não saia atropelando o lugar de fala de outras pessoas.
Isso é postura no mundo. Respeito as pessoas e a si mesma, na hora de reivindicar onde é seu lugar de fala e entender o do outro. Compreender sua localização social é fundamental para conhecer seus privilégios, respeitar as diferenças e não atropelar, invisibilizar o protagonismo de ninguém! Essa consciência também vale para gente não dar biscoito pra quem atropela ou se aproveita de outros lugares de fala que não são seus por likes, vaidade ou fama.
Pensar sobre o ativismo gordo que faço parte e tenho protagonismo, porque sou uma mulher gorda maior é entender outras posturas e dores que complementam a gordofobia, posicionando-se dentro de um lugar de fala e apoiando outros lugares e exclusões.
Como a Bell Hooks nos alerta explicando que:
Temos de trabalhar ativamente para chamar atenção para a importância de criar uma teoria capaz de promover movimentos feministas renovados, destacando especialmente aquelas teorias que procuram intensificar a oposição do feminismo ao sexismo e à opressão sexista. Fazendo isso, nós necessariamente celebramos e valorizamos teorias que podem ser, e são, partilhadas não só na forma escrita, mas também na forma oral.
Dentro de nossos encontros, conversas e depoimentos, estamos buscando maneiras novas de nos libertarmos de nossas opressões, buscando uma transformação do que somos, entendemos e também de como vemos e tratamos as outras mulheres gordas que não são como eu, mas sofrem mais e sofrem menos e precisam de ajuda.
Existe um paralelo à questão de gordas maiores e menores nessa conversa de protagonismos, já que, se estamos todas lutando contra a gordofobia, toda luta é válida e soma, e se aprende a defender outras opressões quando não as sofremos. Mas quando se pesa mais de 120 quilos, ou se usa uma numeração acima dos 58, é evidente que a gordofobia, por exemplo vai ser maior e mais cruel.
Isso é fácil de entender se você tiver empatia e pensar na acessibilidade desses corpos, já que se eu que uso numeração 58 e peso 130 quilos entro num hospital não haverá maca, cadeira de roda, aparelhos de exames que eu caiba confortavelmente para usufruir de meu direito de ter saúde na constituição. Enquanto uma mulher gorda menos que use a numeração 50 consiga ter toda essa assistência sem mais problemas. Ela sofre gordofobia? Claro que sim, mas não sofre como as gordas maiores.
Imagine então uma mulher que nem gorda é, apenas se ache porque não se encaixa no padrão, mas continua tendo todos os privilégios de uma mulher magra: roupas, cadeiras, transporte, macas e aparelhos de exames, etc.
E que depois dessa diferença real de vida, de viver a opressão mais forte, a mulher que se considera gorda mas não é use a pauta da gordofobia em seu canal, as pessoas apoiem isso e quando eu ou outra mulher gorda maior aparecemos cause pavor, pânico aos seguidores, porque na formação social do que é ser gordo para eles é a youtuber gorda, eu sou uma aberração. Isso é muito sério!
Assim, você que apoia essas lutas contra as opressões mostre isso no seu conteúdo de forma prática porque entender o que é empatia é necessário, mas praticar é mais ainda. A Joice Berth citando a Djamila Ribeiro, explica que,
[…] empatia não é um sentimento que pode te acometer um dia, outro não, mas sim uma construção intelectual que demanda esforço, disponibilidade para aprender e ouvir. Tão mais empática a pessoa será quanto mais ela conhecer a realidade que denuncia uma opressão.
Portanto, todas as pessoas possuem um lugar de fala, é uma postura ética, porque saber o lugar de onde falamos é “fundamental para pensarmos as hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo.” (Djamila Ribeiro). E, ainda, é importante que entendamos de onde falamos, em qual localização social estamos inseridos, Joice Berth de novo citando a Djamila Ribeiro que escreveu sobre isso.
[…] o fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.
Posto isso, acredito ser importante que cada mulher gorda, entenda seus privilégios, lugares de fala e hierarquias, respeitando outras opressões que estão juntas da questão da gordura, sem separá-las dentro da construção da subjetividade de cada uma. Mas, também, entendo, e por experiência própria, que esse posicionamento dentro do ativismo vem com o tempo, porque precisa existir uma reconstrução dentro de um processo político, que descoloniza os afetos, para, então, começarmos a pensar criticamente, a partir de nosso posicionamento no mundo, em relação às outras mulheres que querem fazer parte da mesma luta que eu: a antigordofobia.
E como acrescenta bell hooks, é importante pensar nessa discussão:
Se realmente queremos criar uma atmosfera cultural em que os preconceitos possam ser questionados e modificados, todos os atos de cruzar fronteiras devem ser vistos como válidos e legítimos. Isso não significa que não sejam sujeitos a críticas ou questionamentos críticos ou que não haja muitas ocasiões em que a entrada dos poderosos nos territórios dos impotentes serve para perpetuar as estruturas existentes.
Me parece que é importante que todas façam parte dessa construção e delimitações de espaços e localizações de fala, respeitando a opressão sofrida pela outra e buscando compreender qual o seu lugar no ativismo, apoiando. É fundamental a postura das que já conseguiram entender seus privilégios: tenham paciência e didática para explicar às que estão chegando e às que ainda estão por vir. O nosso ativismo salva vidas.
Mas também é importante que reflitamos sobre essa apropriação, que sinalizamos, e que as pessoas comecem a fazer conteúdo à partir da conscientização de seu lugar de fala, de seus privilégios e do que isso causa nas outras pessoas que discutem o mesmo tema, ou seja, deixemos a protagonização das discussões e ativismos para as pessoas que vivenciam o estigma, que são excluídas por isso.
Para Consultar:
bell hooks. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Djamila Ribeiro. Lugar de Fala. Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
Izabela Domingues; Ana Paula de Miranda. Consumo de Ativismo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2018.
Joice Berth. O que é empoderamento? Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
Milly Costa. Quem tem permissão? Disponível em: https://www.instagram.com/tv/B-auEMBnT8A/?utm_source=ig_web_copy_link
Texto publicado no BLOG TODAS FRIDAS em 2020.