As palavras nos constituem. As palavras nos dão acesso ao mundo dos significados, nos permitem organizar, ordenar, classificar, tornar inteligível e racionalmente existente o já existido. Nos permitem dar sentido, nos permitem sentir. Paradoxal, no entanto, é perceber que ao mesmo tempo que as palavras me permitem dar sentido e sentir, elasas palavras- não são suficientes ao sentir. O sentir extrapola, incontrolável, indisciplinado e caótico. Elas- as palavras- me permitem sentir ao mesmo tempo que limitam o meu sentir. Elas- as palavras- dizem o que sou, quem sou, como sou. Elas- as palavras- dizem o que não sou, quem não sou, como não sou. Cartesianamente excludente. Impositivamente determinante. Identitariamente constituinte. Sou elas – as palavras- mas sou muito mais do que elas- as palavras. Usam – “mulher careca” – pra me descrever, pra me fazer existir. Passei a existir na ordem do que não deveria existir. Na ordem do patológico, na ordem do desvio, na ordem do anormal. As palavras que usam pra me fazer existir compõem uma amálgama de discursos que explicam o inexplicável. Ela- a mulher careca- não deveria ser assim. Se é mulher não deveria ser careca, se o é, não deveria ser. Mesmo sendo, mesmo existindo, as palavras usadas reafirmam que não deveria. Voltemos, as palavras que me fazem existir são as mesmas que dizem que eu não deveria. Ao menos não dessa forma. Vai lá- as palavras dizem. Não tem cura? Vai se curar! Quais são os tratamentos disponíveis? dizem também- Não é melhor se maquiar? Desenhar a sobrancelha? Passar um batom? Colocar um brincão? Dizem ainda: E se você usar perucas? E se aprender formas distintas de usar turbantes? E se usar um chapéu? Um gorro? – Você existe, mas não deveria! Ao menos, não assim, não desse jeito! Fui me compondo por essas palavras, fui existindo através delas. Mas hoje faço diferente! Brinco com elas- as palavras! Estico-as, confundo-as, desgasto-as. Crio novas- as palavras! Alargo o léxico, rompo a morfologia, reinvento a coerência, construo novos sentidos. Rasgo palavras, costuro significados. Então a resposta é: Não! Não vai ter tratamento, peruca, chapéu ou brincão. Vai ter confusão. De palavras e de sentidos. Se as palavras que me fizeram existir até aqui não me comportam, vou criar novas que me expandam!


Daniele Lemos
Nasceu em 1989 no Rio de Janeiro. Atualmente professora de sociologia do ciclo básico. Licenciada e bacharel em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado em sociologia pela mesma Universidade. Atualmente finaliza seu doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro com uma pesquisa autoetnografica sobre a relação entre gênero e alopecia. Sua própria experiência como mulher despelada desde os 11 anos de idade tornou-se o ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre o tema, culminando no trabalho intitulado: A alopecia como performatividade: Eu, sereia careca. Atualmente , junto com a artista Lolla Angelluci e Mariana Amaral, integra o grupo - Sereias Carecas- que busca visibilizar a experiência de mulheres com alopecia a partir de uma ênfase na despatologização dos seus corpos.